Perfume

segunda-feira, 27 de julho de 2009

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"Oh amor,
Você me deixou aqui
Sozinho nas esquinas
E bares da vida
Deleitando-me com sua ausência
Tão presente..."

O rádio tocava a música, sucesso imediato, um grande estouro. Na época, Jaime ainda lembrava, a música fora feita para uma mulher em especial: Júlia. Júlia era a mulher de sua vida, presença constante em seus sonhos e em seus pensamentos quando acordado. Não largava, de fato, sua mente. Júlia era uma mulher especial. Jaime se lembrava de quando a vira pela primeira vez, num de seus shows. Estava cantando uma música agitada sobre a corrupção, quando essa mulher, linda, na primeira fila, o olhou. E ele pra ela. Não conseguiu mais cantar. Sua voz se prendeu no fundo de sua garganta. Sua língua tornou-se rija como aço, inflexível como uma parede de concreto. Todos pararam, perguntaram o que acontecera. Ele simplesmente enttou esse som, em alto brado, sem microfone, sem ensaio, sem intrumentos. Era a música de sua alma, que ele explanava e entregava nas mãos da pequena. Tão penetrante foi seu transe, que nem a revoada de aplausos que se seguiu a seu canto, nem os olhares de seus colegas de banda, nem mesmo o choro da menina o despertaram dele. ELe ofereceu sua mão à moça, a tomou nos braços, e foram para fora daquele lugar, daquela platéia, daquele auditório lotado de insensíveis estranhos sangue-sugas.
Depois de uma noite de amor sensacional, Júlia estava acordando em seus braços, seus cabelos provocando aquele incomodozinho gostoso neles. Ela se levantou, o olhou profundamente e saiu nua em direção ao banheiro. Se lavou. Voltou perfumada, intensamente e deliciosamente. Aquele cheiro de rosas, ou seria de grama molhada, ou ainda o cheiro de um jardim? Jaime não sabia, e nem se importava, bastava que soubesse que era bom, e muito.
Jaime e Júlia ganharam as manchetes da maioria dos jornais, embora o casal tentasse a todo custo esconder a relação, por razões de privacidade. Seu romance ficou por muito tempo oculto, até o dia em que um fotógrafo os pegou bem no meio de um beijo, na sorveteria próxima. No dia seguinte, estampada em um jornal, estava a manchete "Abalando corações", encimando a foto na sorveteria. Advogados foram acionados, abriu-se um inquérito, mas nada poderia apagar da mente dos brasileiros a notícia: "Jaime estava apaixonado". Assumiram publicamente a relação. Fotógrafos, imprensa, tudo estava em cima deles, a todo instante. As tardes no parque ficaram esquecidas, os momentos na sorveteria se foram, os passeios noturnos pela cidade se dissiparam como poeira no vento. Era o fim de sua privacidade.
Aos poucos, foram se afastando emocionalmente, e aumentando sua frequência sexual, reação previsível de um casal que deseja manter a relação, embora sinta cada vez menos atração emocional um pelo outro.
E foi com o sexo primeiro que a relação decaía. A mídia, reparando a frieza dos dois, comparava o início do relacionamento com o que eles diziam ser o final. Jaime estava ficando maluco com toda aquela informação aumentada. Via as informações da mídia se concretizando, via seu relacionamento morrer, via a mulher de sua vida correr pelos seus dedos como a água que lavava sua face todas as manhãs, assistia, amarrado, seu relacionamento naufragar, levando com ele tudo o que já significou de bom em sua vida. Tudo o que ele considerava belo, tudo o que ele via como bom, bonito, boas lembranças, recordações, tudo! Tudo afundava na lama do fim. Se agarrava cada vez mais a fotos de momentos de outrora, aos perfumes de sua bela, aos anéis. Mas não adiantava. Seu Titanic pessoal não parava. Era o fim. E ele o faria como um fim deveria ser.
Ligou o rádio. Sua música tocava. Afundou seu corpo na banheira luxuosa. CHorava profusamente. Lágrimas imperceptíveis se misturavam à água em excesso ao seu redor, seus olhos ficavam cada vez mais vermelhos, ergueu-se. Nem se matar conseguia. Arfava, sentia sua cabeça latejar, seu peito subir e descer. E mais ainda chorou, havia uma foto de Júlia bem à frente da banheira. Empurrou com o pé, chutou aquela vaca vadia para longe de si. Ela não soube auxiliar em seu relacionamento. "Onde está ela agora?" ele pensava. Ele tentava ajudar seu relacionamento, mas ela nada fazia. Ficava de braços cruzados, vendo tudo desandar, assistindo, como no fatídico show, na primeira fila, a derrota de seu amor, o fim de sua paixão. Agora, ele estava se matando por causa daquela vadia estúpida.
"VADIAAA!"
Ele se viu gritando. Agarrou a própria cabeça, seus pensamentos se embaralhavam. Parecia espremer as lágrimas que saíam de cada um de seus olhos. No fundo da benheira, esquecido, estava seu fim: aquela lâmina prateada e fina, que jazia próxima ao ralo, destinada a matar um rato qualquer, agora seria seu fim, um fim, ele julgava, bem mais nobre. O metal contra a pele revelava a abundância do vermelho. Quando os dois se misturavam, parecia que surgia um mar de sangue intensamente vermelho, que escorria de seu pulso para a água ao redor, que aos poucos ficava vermelha, e cada vez mais. Enquanto sentia sua vida ir pelos seus pulsos, de maneira tão romântica e tradicional, Jaime se perguntava se ele morreria tão pateticamente. Nem se matar decentemente ele conseguia. Era um estorvo, um grande saco de merda no lixão do mundo.
Era melhor assim, ele sabia, era a única coisa que ele sabia. Braços firmes, delicados e decididos seguraram seu abdome nu, enquanto o puxava para fora da água, e dava-lhe um soco no canto da boca. Sentia seu braço ser dominado e amarrado a um pano. Seria a morte brincando com seu corpo?
Abriu os olhos. A iluminação local os feriu, eles estavam vermelhos e acostumados à escuridão de sua alma. Júlia estava ali, logo à frente dele. Ele, arfando, tossindo e vomitando no chão frio do banheiro.
"Posso saber por que meu namorado virou um suicida?"
Nenhuma resposta.
"Posso saber porque eu saí e você decidiu fazer essa estupidez? Posso saber porque você é tão idiota a esse ponto? Posso saber porque pensou em se matar, tirar sua vida por causa de sei lá o que? POsso saber porque você estava tomando uma atitude tão babaca e imbecial? Ein, posso saber seu filho da..."
"Pare, vadia! Pare com suas indagações acusatórias e infundadas. Pare de vários nomes me chamar. Pare, pois seu perfume delicado esconde a podridão fétida de sua alma, sua maquiagem esconde os quilos de insensatez e crueldade que inundma sua alma, seus lábios escondem a pura maldade que corrompe seu íntimo."
Apontava seu dedo indicador para ela. Nu, descabelado e de olhos vermelhos: alucinado.
"Você piurou, foi isso que aconteceu. Amor, mas porq..."
"Perguntas o motivo, queres saber da razão de minha insensatez? Eu te respondo, porque sei da verdade. Sua víbora maldita! Eu sei os segredos que essa carapaça externa esconde do mundo. Eu sei o quanto você me odeia, o quanto você gosta de privacidade! Quanto meu amor significou pra você? NADA! Nada, porque você é uma vivúva-negra, e deseja se alimentar de minha desesperança e desespero para continuar seus planos."
Um riso malicioso se espalhou pelo sorriso da pequena. TUdo atingiu uma coloração avermelhada, um tom mais sinistro:
"É amor, eu sempre quis isso. No fundo, meu objetivo era fazer você se matar. VOcê nunca teve esperança e nunca a terá. EU sou seu fim, você não pode ser feliz!"
"Pare! Pare com isso, para de falar, suas falas disparam como flechas certeiras contra meu coração, flechas velozes e furiosas. Flechas malditas, flechas hostis, flechas..."
"Flechas cujo destino nada mais é que o profundo de seu ser, cuja única meta é matar-te da forma mais dolorosa que eu conseguir. SIm, sim, sim, SIM! E sabe a única escapatória? ã, sabe?"
"Não, não, não...PARA!"
"ME MATA!"
"Não, para"
"ANDA, ME MATA, ENFIA ESSA GILETE NO MEU PESCOÇO, ACABA COM O MAL QUE TE FLECHA, POIS É O ÚNICO MODO DE COMBATER ESSA ARMA."
"Não, por favor..."
Estava ajoelhado agora. Perdera as forças
"NÃO HÁ MODO DE COMBATER FLECHAS, O ÚNICO MODO DE CESSAR SEU FOGO É ACABANDO COM O FLECHEIRO, COM A ORIGEM, A ESSÊNCIA, MA MATE!"
"Por favor, não..."
"ME MATE, É O FIM! ANDA, AGORA, EU QUERO QUE VOCÊ ME MATE, EU ARRUINEI SUA VIDA, TIREI SUA FELICIDADE, TODO O BEM QUE HAVIA DENTRO DE VOCÊ EU SUGUEI, COMO UMA SANGUE-SUGA, UM PARASITA MALIGNO, UM VERME, UM..."
Jaime, o gilete e o pescoço de Júlia. Quando o sangue quente da menina fez contato com as mãos homicidas do rapaz, sua visão perdeu o tom vermelho. Júlia não apresentava o olhar maligno. Júlia estava chorando. Júlia estava com um rosto de terror, que transmitiu a Jaime. A dor, o sofrimento. Jaime se debatia no chão. Se mutilava, se cortava em todas as direções que pôde conseguir. Queria acabar, remover de seu peito, retirar à força sua alma homicida. Deveria pagar pelo crime, deveria morrer, sentir dor e que essa dor não cessasse após sua morte. Matara a única razão de sua felicidade. Acabara com tudo o que significava sua razão de ser e existir. Colapsara seu íntimo, extinguira com suas mãos a essência de seu próprio ser.
Merecia a dor que sentia, a dor profunda, e ainda muito mais. SOrria. Estava sentindo dor.
Estava sorrindo, dava gargalhadas. Gargalhava alegremente, eram altas. E quando a alegria da dor superava esse sentimento, se cortava novamente. Queria sentir dor. Dor profunda. Cortou a membrana entre seus dedos. Enquanto cortava e o sangue fluía profundamente, gargalhou. E então, com esse fantasma de riso gravado no rosto, respirou mais profundamente, olhou para Júlia, e deixou-se levar pelos braços da morte. A pequena ficara eternamente gravada em seu pensamento. O fantasma da últiam gargalhada não largou seu rosto feliz, repleto de sangue, sangue no chão frio.

1 conselhos:

Júlia Athayde disse...

Nossa!