E o dia amanheceu em paz...

sexta-feira, 20 de julho de 2012

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Estou de volta! Isso pode ser algo bom para todos, bom para mim, ou decididamente uma catástrofe.Mas o fato é que estou de volta, e a fim de levar a coisa um pouco mais a sério desta vez. E recomeço significa atualização, tudo novo, inclusive o nome!
Speculis Anima, espelhos da alma. Blog e Tumblr também. http://speculisanima.tumblr.com/.

Mas como panela velha é que faz comida boa, e relembrar é viver, começa com uma história do meio do baú (não é do fundo do fundo não, foi em Julho/2011).

Vamos?

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O barulho do falatório das pessoas descendo as escadas do prédio, prontas para a labuta diária, o fez sensibilizar para o sol que aquecia mansamente o lado esquerdo de seu rosto enquanto ele dormia. Em sua boca, aquela sensação engraçada de que a saliva tornou-se duas vezes mais pastosa que o normal, e o inexplicável hálito de temperos acentuadamente fortes. Seus olhos tentaram abrir-se, mas a desagradável agressão dos raios solares às suas pupilas fizeram reacender sua dor de cabeça, como uma pequena faísca desencadeia uma grande explosão. E foi somente quando a pontada afiada da dor atingiu o topo interno de sua cabeça, onde quando criança jazia sua moleira, que ele se deu conta de que aqueles passos não eram de sua vizinhança, e que aquela cama onde ele se deitava não era a dele, nem os edredons que faziam seu corpo suar. Aliás, deu-se conta um pouco depois de que aquele peso incômodo sobre seu abdome era nada menos que uma perna.
Seus olhos abriram-se rapidamente, o surto de adrenalina fazendo-o ignorar a pontada violenta no topo de sua cabeça. Havia uma mulher ao seu lado. Uma linda morena de seios e pernas firmes, que jaziam expostos à fina claridade da luz do sol. Sua pele era de um branco bronzeado, que contrastava com o negro das cobertas que lhe atingiam apenas o baixo ventre.
Sua cabeça girava e seus pensamentos não se conectavam uns aos aoutros, para formarem uma linha lógica. Efeito, provavelmente, das diversas garrafas de vinho tinto e martini que salpicavam, vazias, o chão morno de tábua corrida brilhosamente encerada. O rádio, como na tentativa de dar-lhe alguma pista sobre o ocorrido na noite anterior,tocava ao som ambiente uma valsinha que dizia:

"Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
E olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era o seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto,
Pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar..."
SIm, era verdade... Ele se lembrava agora... Seu nome era Miguel, e vivia no auge de seus 30 anos, 18 dos quais destinados ao celibato. Era o responsável pela paróquia de uma cidadezinha do interior de Minas. Mas... O que estava fazendo ali, nu, ao lado daquela muljer e rodeado por tanta bebida?
Sim... Na noite passada... Como todas as outras noites... Aquela menina foi se confessar... Sua voz angelical e delicada contava ao padre, através da parede do confessionário, as atrocidades de uma mulher da pior estirpe. Contava a ele com detalhes os últimos acontecimentos de sua vida voluptuosa de luxúria e pecados. Das primeiras vezes, ele sentira-se enojado com a morena, e olhava-a com a pena de alguém que vê uma alma perdida nas amarras da tentação e do desespero, enrolando-se cada vez mais nas garras do mal. No entanto, à medida que ela prosseguia com sua rotina, as histórias já eram esperadas por ele. Portanto, ele não mais se chocava com o horror da situação: o que lhe chocava eram os detalhes sórdidos por ela entoados. Em sua mente, ele ia criando as imagens das cenas de horror e luxúria por ela descritas, sempre nas quais ela era cercada por homens ávidos por prazer a qualquer custo.
À medida que o tempo passava, as histórias da morena despertavam em Miguel sentimentos esquecidos, sedimentados no fundo de sua mente por anos de castidade. Sentia novamente aquela sensação estranha percorrer-lhe a espinha ao imaginar a morena nua, no ato sexual. O prazer proibido era, a todo custo, combatido por Miguel, que se punia todas as noites pela consciência do prazer que sentia em suas histórias, em sua voz.
Mas a força do instinto animal era muito intensa, intensa demais para a nobreza da castidade espiritual. E na noite anterior, com uma história das mais picantes, a morena conseguiu o que queria: Miguel se rendeu à tentação.
O padre saiu do confessionário e sentou-se nas cadeiras da igreja. Seus olhos estavam aflitos em lágrimas. Suas mãos agarravam-se à cabeça no furor do desespero. Seus pensamentos, perdidos em um turbilhão de ideias e valores, que se chocavam em algum lugar da sua psique, destroçando seu espírito. Sentiu um toque suave por cima de sua bata, na altura do ombro. As mãos delicadas da morena desciam-lhe pelas costas em um carinhoso afago e subiam pela região frontal de seu torax, em um abaraço delicado. Sua respiração suave e com aroma adocicado foi sentida no ouvido do Miguel, lhe dizendo que "Estava tudo bem...". Não, não estava tudo bem. E Miguel sabia disso. Mas não havia como controlar os arrepios que lhe subiam pela espinha a cada movimento da morena. Não havia como controlar seus pensamentos e não havia como controlar a excitação que lhe explodia em seu íntimo. Não houve, também,como controlar o beijo que lhes consumiu, a seguir, em paixão. Suas bocas encontravam-se com volúpia, com desejo, com ardor. As lágrimas ainda caiam dos olhos de Miguel em um desespero afoito, como uma última parte consciente naquele corpo tomado pelas forças da sedução.

"E então ela se fez bonita como há muito tempo não se ousava usar
Com seu vestido decotado cheirando a gaurdado de tanto esperar
E então os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça
E começaram a se abraçar..."

As lágrimas desciam agora pesarosas pelo rosto de Miguel, caindo sobre seu peito nu. Estava sentando naquelas tábuas do soalho, os braços em torno dos joelhos numa atitude infantil de proteger-se da realidade que lhe invadia os sentidos. Como pudera render-se àquele ponto? Como pudera chegar tão baixo? Como pudera jogar fora todos aqueles anos de celibato? Como pudera dispensar o compromisso com o divino pelo puro prazer carnal?
Levantou-se vagrosamente, sentindo seus genitais penderem livres, expostos a frente daquele corpo nu, daquela jovem que dormia um sono tranquilo. Sentiu-se sujo, sentiu-se corrompido, sentiu-se o pior dos homens. Caminhou o mais distante possível daquele corpo que era a prova de sua corrupção. Mas o pior era a sensação de ter sido ludibriado pelas artimanhas da carne... A genialidade dos jovens...

"E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos
Como não se ouvia mais..."

Estavam já subindo as escadarias daquele lugar sujo e mal iluminado. Os risinhos infantis surtiam em Miguel um efeito hipnótico, que parecia manter nele o transe e a excitação daquela transgressão. Alcançou-a no meio da escada, e, segurando-a por trás firmemente, sugou-lhe violentamente o pescoço. O som do prazer emitido pela menina só fez aumentar-lhe o desejo, a volúpia. Entraram afoitos porta adentro, mal se preocupando em trancá-la novamente. Uma vez dentro do apartamento, a menina ofereceu-lhe uma taça de vinho, que tomou sem nem pensar. Duas, três, um martini. E então seu organismo cedeu ao álcool e às drogas que provavelmente estavam ali misturados. E dali em diante não havia mais recordações claras e nítidas. Tudo foi um borrão de pecado, ira e agressão. Lembrava-se de despi-la com violência e desejo, e lembrava-se do toque suave de sua boca doce experimentando-lhe o íntimo. Fizera o mesmo. Lembrava-se, mais a frente, de deitar-se por sobre o corpo dela, agarrando-lhe animalescamente o pescoço, enquanto saciava seus desejos escondidos com seu corpo. Lembrava-se mais a frente de uma onda de prazer nunca antes sentida, e então não se lembrava de mais nada.
(...)
Agora ele estava ali, sentado com as costas apoiadas à porta. A menina, após muito tempo, abriu os olhos. Levantou-se. Espreguiçou-se vagarosamente, com o olhar fixo sobre o corpo nu de Miguel. Um sorriso torto preenchia seus lábios. Sem reitrar os olhos do rapaz,ela pegou o lençol que forrava a cama e caminhou até ele, com suas pernas delineando maliciosamente cada passo. Jogou por cima do corpo dele o lençol, deu-lhe uma piscadela maliciosa e, rindo abertamente, encaminhou-se para seu banheiro.
Miguel ficou ali, parado. Enquanto as lágrimas desciam de seus olhos em um choro que convulsionava todo seu corpo, suas costas sentiam o frio da porta, e o corpo o toque suave do algodão alvíssimo manchado com o sangue da virgindade e da "inocência" que Miguel tomara da menina na noite anterior.

"E o mundo compreendeu.
E o dia amanheceu
Em paz."