Observador de soslaio

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

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O vento gélido da manhã veio beijar-lhe a face, enquanto abria sua janela de vidro esquadrinhado por um metal verde e simples. O primeiro contato de sua pele morna com a frialdade ignorante do metal causou-lhe um leve choque. As cortinas de pano vasado foram abertas e lá estava o rapaz descendo as escadas de pedra que ligavam o condomínio à rua. Talvez quem visse a cena não lembrasse de nada, mas na mente do nosso observador de soslaio passou-se uma cena, que ocorreu há um tempo, no ônibus. Digo, duas cenas, uma em sucessão à outra, ambas no mesmo ônibus, em dias diversos.
O rapaz entrara no ônibus com a arrogância de um camelo e sentara-se ao primeiro assento vazio que pudera recostar-se. Acomodara-se, enquanto esperava o ônibus partir do ponto final. Fechara os olhos e deixara-se estar num sono leve, instabilíssimo. Um pequeno tranco acordara-o de seu estado de semipresença no local. Foi quando ele percebera que, bem ao seu lado, havia uma senhora, devia ter bem seus quarenta e poucos anos, e sua aparência dava-nos a impressão de uma mulher sofrida e batalhadora. Ao vê-la desse modo, nosso arrogante rapaz pedira, com a voz um tanto engrolada de quem acaba de acordar, o que talvez tivesse contribuído para o tom ainda mais rude:
"Você quer que eu segure sua bolsa?"
A mulher, passado o ligeiro susto inicial, dissera-lhe:
"Não, obrigada."
Seu tom foi seco rude. Talvez a qualquer outro espectador aparentasse apenas a resposta do seu psicológico às dores de toda sua vida, mas ao menino fora uma desconfiança pessoal. Aquela senhora não confiava nele, e achava que ele a roubaria ou algo do tipo. Deveria estar aparentando a cara de um ladrão, ou alguém cuja vida fosse sustentada por atos indignos. Sentiu-se extremamente ofendido e, na saída, fizera questão de olhar feio mais uma vez para a mulher. O nosso observador estava no banco logo atrás, e assistiu à cena com perguntas na cabeça.
Agora, o menino virava a esquina, seu tênis de marca acabara de desaparecer pela coluna da padaria, enquanto o fluxo de lembranças do segundo ato inundou a cabeça do nosso observador.
O menino tornara a entrar no ônibus, ao mesmo dia, na volta de suas atividades, que renderam volumosos e vistosos frutos, os quais tiveram que ser carregados até uma casa, e a eleita fora a casa do nosso jovem rapaz. Herique era seu nome, caso as apresentações tenham sido suprimidas. Henrique agora estava parado de frente para uma senhora, não igual àquela da manhã, mas uma senhora negra, já com seus sessenta anos aparentes.
"Deseja que eu segure isso pra você, filho?"
O rosto da senhora era simpático, e Henrique lembrara-se de sua avó, que falecera algumas semanas antes. Acho agora justificável uma pequena análise psicológica do rapaz: Henrique não era rude, nem mal-educado. De fato, era um jovem vivaz e muito culto: adorava música clássica e rock dos anos oitenta. Além disso, tivera em casa uma rígida educação, fornecida, em partes, pela sua , em outra pela sua mãe. Seu pai, não conhecia. Assim, seu único problema era que, às vezes, esquecia-se de ser educado, ou seja, às vezes a educação fugia-lhe da mente, pelo simples fato de ele não reparara na falta de educação que estava a cometer. Assim, seu problema era o esquecimento, a falta de atenção, o que era difícil de ser doutrinado.
Seguimos então nossa história.
Como dizíamos, o menino lembrara-se de sua , e aquilo insuflou em seu peito todos os princípios que aquela moça o ensinara. A senhora era velha, parecia ser frágil e seus volumes eram muito pesados e espaçosos, o que talvez a sufocasse, além do peso que faria sobre seu fêmur, já bem fragilizado pela osteoporose e pela osteopenia. Além disso, por si só, era alguém que merecia respeito, de modo que não lhe parecia de todo correto despejar sobre alguém que havia oferecido toda sua educação, bagagens pesadas e, para elas desnecessárias.
"Não, minha senhora, obrigado, mas não precisa."
E a senhora olhou feio para ele. Provavelmente, pensara a mesma coisa que ele pela manhã.
Nosso observador de soslaio olhava agora o vulto de menino desfazendo-se pela esquina. Mas um outro grande vulto, carregado dos jornais e potes, trombou com ele.
O que aconteceu de fato fica na imaginação do homem mexeriqueiro: teria o menino ralhado ou Henrique encararia a casualidade com parcimônia. Teria talvez espaço o humor e algumas risadas? Ou a plateia composta pelo nada e pelas consciências dos atores principais, além de ratos e organismos populacionais de uma cidade urbanizada, assistiria novamente uma explosão de ira desmedida?
Nosso observador permitiu em seu rosto um pequeno sorriso. Saberia sua próxima história. Enquanto despia-se, e preparava-se para seu banho, pensava nos esquemas e nas tramas de seu próximo romance. O título... Bom, isso encadeou outra corrente de pensamentos complexos, mas isso fica para próxima história. Essa já está demasiado longa, não suportaria mais acontecimento sem fazer babar sobre o teclado os fluidos de suas papilas gustativas.

Problemas polares

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

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E vão-se embora as roupas, na ordem: blusa, short, cueca. Nu, completamente desprotegido, exposto aberto. De repente, uma sensação de prazer irremediável, uma arrepio gostoso que sobre pela espinha, um arrepio intenso, intrínseco à vida.
E o corpo relaxa, e a mente viaja, rodopia pelos ares, sem rumo, rumando para um outro lugar, mas sem sair da posição. Contraditória vertigem de sensações que culminam num mesmo ponto: o prazer real, carnal, prazer humano.
Novo arrepio, nova sensação, percepções mais apuradas, sentimentos à flor da pele, e enfim o orgasmo, ah o orgasmo, como é bom sentir o ápice do prazer, envolto por um lugar quentinho, acolhedor, embora pequeno, ou não, tamanho ideal. Se fosse maior talvez não tivesse a mesma magia.
Então, após o clímax, sentir o toque suave pela pele, percorrendo cada poro, cada centímetro quadrado desta vasta imensidão do corpo, da ponta do cabelo até o dedo do pé. Nova sensação gostosa, a lavagem da alma, o fluxo dos problemas e das quizilas da vida para o exterior, e descer o ralo.
Ah, como é gostoso chegar de um longo dia e sentir-la cair por todo seu corpo, rodeando-o, encobrindo cada poro de sua epiderme, a doce beleza, força da natureza, solvente universal!

(A quem porventura interpretou de outra maneira, até que fosse lido o último parágrafo, não sinta-se mal. É um daqueles caprichos de escritor vazio, que obriga a pessoa a ler sua obra, no mínimo, duas vezes para que possa ser captada em toda sua essência. Ou não.)