"...E a peça termine, sem apalusos"

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

| | | 4 conselhos
Acho que se tornou meio que uma mania minha dizer que faz bastante tempo que não venho aqui, porque praticamente todo texto que posto começa desta forma. Para não quebrar a tradição: nossa, faz bastante tempo que não venho aqui! Aliás, tradição é justamente o tema que venho trazer para encher o saco de vocês dessa vez.
Pergunto-lhes, agora: você considera tradição uma coisa boa? Reflita sobre tradições e pense se manter uma tradição é algo benéfico ou não, pense se vale a pena dar espaço ao novo, e esquecer, pelo menos parcialmente, as tradições.
Encaro vocês como meu divã particular (mesmo que não tenha ninguém lendo este texto, considero a internet em geral como meu divã particular) e venho expor aqui um mal que vem atormentando a minha vida há um tempo: a falta do teatro. Dia desses, estava conversando alguma banalidade com a Marcela e o Renato, quando, de repente, me veio à cabeça uma cena muito antiga, absolutamente do nada, algo que tinha preso no emaranhado desorganizado do meu subconsciente.
Eram quase cinco horas da tarde, e estávamos lá nós, parte dos alunos do primeiro período formando um círculo perfeito. Um homem de cabelos encaracolados que sempre me lembrara Chaplin (até então não sabia porque) estava na minha frente, gritando sílabas sem sentido, ao que a roda de alunos, a uma só voz, o imitava. "Aia-pá-pá, aiá-pá-pá... guli-guli-guli-guli-, pá-pá" e fazia uma dancinha coreografada. A cena era cômica, e o único sentido dela era este: ser cômica e desinibitória. Estávamos prestes a fazer nossa primeira apresentação "em público" (o resto da turma estava sentado na plateia).
Após a descontração, pegamos cada um um texto para ler. Lembro-me que peguei um trecho de Walcyr Carrasco, em Vida de Droga (hoje leria algo como 'A vida é uma droga?'). Lembro-me que cada nervo do meu corpo estava focado em perceber, de antemão, as nuances e pausas do texto. Cada fibra do meu ser se focalizava em adivinhar qual seria o ritmo e a intensidade da cena. Foi uma situação de tensão, as pessoas todas me olhavam. No fim, quando lei o ponto final, respirei aliviado, foi quase um orgasmo. A sensação de bem estar subia da ponta dos meus pés (porque eu sentia o tato dos meus pés no chão) até o alto da minha orelha (e ouvia tudo ao meu redor), me consumindo numa espécie de taquicardia controlada que me causava um frenesi intenso. Estava pronto, pronto para fazer a minha primeira cena verdadeiramente complicada.
O nome, lembro-me até hoje, era grande, e nos dividimos em quatro (eu, Natalia, Bruna e Pedro) para dizê-lo completamente: "Coronel mostarda, com o castiçal na cozinha. Quem matou com o catchup na varanda?" e então fomos todos para o camarim, para dar início à peça. Lembro-me que alternava de papéis: hora o empresário assassinado (onde eu vestia calça jeans, uma blusa preta e cabelos esbranquiçados de talco) e hora o filho do empresário (onde eu ficava de joelhos, de short amarelo, camiseta regata e um boné virado pra trás). Natalia era minha mãe/esposa. Lembro-me que tinha por volta de quarenta segundos para trocar de roupa, era uma correria danada.
Bom, inicialmente, a peça era pra ser um drama, mas devido aos pequenos erros aqui e ali, e os improvisos inevitáveis, no fim sentimos que o melhor clima para peça era mesmo a comédia. Tempos bons, tempos muito bons onde rir era tão fácil, tão natural que me esquecia como era triste a vida sem o riso. E ali, ao fim da cena, senti que algo havia mudado dentro de mim. Algo que me infectava desde o início do período definitivamente dera seu golpe final. Estava terminantemente infectado pelo vírus do teatro. E dali pra frente foram muitas aventuras. Teve o segundo período, em que infelizmente não tive a sorte de ter aula com Aramis, mas aprendi bastante, no terceiro período, participei do "Marido, Mulher e Amante", primeira grande apresentação, em que fiquei com os nervos à flor da pele, e acabei curtindo um pouco menos; e, no período seguinte, "Aventuras de hotel" texto de João do Rio, em que interpretei o velho Senador Gomes, com suas sobrecasacas imundas. Neste período, tive a grande honra de conviver mais de perto com meu grande mestre, e aprender com ele muita coisa. Foi, definivamente, o melhor semestre da minha vida no teatro.
Por último, ainda teve o grande desafio: a despedida do Aramis. Momento triste, mas que queríamos coroar com chaves de diamantes. O desafio foi: sair do palco e ir para o outro lado, dar uma de mini-diretor. Grandes dificuldades do desafio: era uma turma de primeiro período, que nunca tinha trabalhado texto com falas; começamos a ensaiar as duas peças uma semana antes; tivemos que adaptar nada menos que "A Cartomante", de Machado de Assis. Aquele dia eu entendi o que o Aramis sentia quando nos vê no palco. Além de um reflexo do nosso próprio esforço e desgaste das cordas vocais (com os gritos de "fala pra fora", "fala devagar", "agora mais rápido", "o rosto costuma ser mais expressivo que os glúteos!"), é perceber que, mesmo num tempo muito curto, mesmo contra as adversidades, o esforço e o trabalho em equipe, a união de pessoas dedicadas a um bem maior, pode mover montanhas, e fazer milagres. O pessoal foi um sucesso, "A cartomante" e "O Noivo" ficaram lindos.
Mas infelizmente tudo acabou. Aramis saiu do colégio, as luzes do auditório se apagaram para o teatro, e o silêncio e a frialdade de assuntos materiais e chatos agora é o que domina aquele lugar. O espírito dos ex-professores de teatro mortos em baixo do palco foi totalmente apagado pela frieza das reuniões de comitês, ou das reuniões do administrativo do colégio. Aquele lugar, que antes exalava arte e vida por todos os cantos, agora só reflete o vazio e os fantasmas de um passado glorioso e nobre.
Não há mais luz. Não há mais som. O colégio não é mais o mesmo. A vida não é mais a mesma. Agora só resta o vazio.
E com lágrimas marejando os meus olhos me despeço, refazendo a pergunta que antes tinha feito: será que vale totalmente a pena abraçar o novo e as mudanças, e suprimir as tradições?
Ficam minhas lágrimas verdadeiras. Fica um grande abraço.
Ficam também, Aramis, minhas saudades, e o meu voto de que sua vida siga sempre em frente, e que você continue a contagiar as pessoas ao seu redor com essa alegria e vontade de viver, e que você tenha muito, mas muito sucesso.

"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios.
Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente,
antes que a cortina se feche
e a peça termine, sem aplausos."
Charles Chaplin